Os brasileiros que estão deixando Portugal por causa do aumento do custo de vida
02/10/2025
(Foto: Reprodução) Tradutora brasileira que morava em Portugal diz que tem mais qualidade de vida no Brasil.
Arquivo pessoal via BBC
"Temos mais qualidade de vida em Florianópolis do que em Portugal".
É assim que a brasileira e tradutora Lara Sheffer, de 30 anos, define sua volta ao país em agosto deste ano, depois de dois anos vivendo na Europa. Em junho de 2023, ela e o namorado se mudaram para a cidade de Oeiras, próximo a Lisboa, por causa de uma oferta de trabalho ao companheiro.
Passados mais de dois anos, o custo de vida começou a aumentar consideravelmente, segundo ela, e o que era tido como barato para duas pessoas, se tornou quase impraticável.
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"Acho que, em casal, passamos a gastar entre 300 e 500 euros a mais por mês no total para comer fora, mercado, sem contar o aluguel", afirma.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística de Portugal, a inflação no país voltou a subir em agosto de 2025, atingindo 2,8% no acumulado de 12 meses. O índice havia ficado em 2,6% em julho e agora registra o maior patamar desde dezembro de 2024. O avanço foi puxado principalmente pela alta dos alimentos, que subiram 4,0%, a maior variação desde outubro de 2023.
Além do encarecimento de despesas básicas, o valor dos aluguéis começou a ficar cada vez mais custoso. Um apartamento de um quarto na região metropolitana, por exemplo, saía por até 935 euros dois anos atrás e, agora, o mesmo imóvel já chega a custar 1250 euros, segundo Lara.
"Era um valor absurdo para um T1 (imóvel de um dormitório)", afirma.
De acordo com o site Idealista, plataforma europeia de venda e aluguel de imóveis, em agosto de 2025 o preço médio nacional para aluguel foi de 16,8 euros por metro quadrado, um aumento de 0,7% em relação a julho e de 3,3% em relação ao mesmo mês de 2024.
Ela acredita ainda que o aumento expressivo dos preços se deu, principalmente, por causa de inquilinos ou hóspedes temporários europeus com maior poder aquisitivo. "Acaba elevando o valor do arrendamento e imóveis em geral", diz.
Outro fator que pesou na decisão de sair da Europa foi a demora na renovação da autorização de residência, o que a deixava "presa" no país.
"A minha [autorização de residência] seria em novembro e a gente já percebeu que eu provavelmente ficaria aí quase um ano presa dentro de Portugal, sem poder viajar, que era um dos maiores motivos para a gente estar lá", diz.
Após avaliar os custos e burocracias no país, ela resolveu voltar para a capital catarinense. "Nós realmente temos uma qualidade de vida melhor aqui. Em parte porque o meu trabalho é independente, então, eu trabalho muito para clientes de fora e costumo receber ou em euro ou em dólar. Vivendo no Brasil, a gente consegue e acaba tendo uma vida mais confortável", diz.
"Também sinto que aqui é muito mais fácil ter a casa própria. Eu já tinha um apartamento aqui e trocamos por uma casa. Não vamos pagar aluguel, e o que pesava lá realmente era o arrendamento", diz. Segundo Lara, ela e o namorado não pensam em voltar a morar na Europa por enquanto.
Ela não é a única que se queixa das mudanças dos preços no país. A BBC News Brasil conversou com outros brasileiros que já deixaram Portugal, principalmente, pelo aumento do custo de vida.
Por que encareceu tanto?
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O aumento do custo de vida em Portugal faz parte de um movimento mais amplo na Europa, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem. Desde 2022, a combinação de crise energética provocado pela guerra da Ucrânia, inflação de serviços e juros mais altos aplicados pelo Banco Central Europeu resultou no encarecimento da habitação e na redução da oferta de novas casas.
Segundo João Alfredo Lopes Nyegray, professor de Geopolítica e coordenador do Observatório de Negócios Internacionais da PUC-PR, os preços médios dos aluguéis na União Europeia subiram cerca de 28% entre 2010 e 2025, enquanto o valor das casas avançou mais de 55%.
No caso português, essas pressões externas se somaram a tendências já existentes, como a "turistificação" e a forte procura de estrangeiros por imóveis em Lisboa e Porto. Nyegray explica que o turismo bateu recordes em 2024, reduzindo a oferta de arrendamento de longo prazo.
Além disso, a criação de vistos para nômades digitais e autorizações de residência para trabalho remoto ampliou a presença de profissionais com salários mais altos que os praticados localmente, o que puxou os contratos novos para patamares incompatíveis com a renda média da população.
Essa dinâmica, afirma o professor, gera um "duplo estrangulamento": ao mesmo tempo em que a procura cresce com visitantes, expatriados e trabalhadores remotos, a construção de novos imóveis é travada pelo encarecimento das hipotecas e dos custos de materiais.
O resultado é um mercado com preços de referência cada vez mais distantes da realidade salarial dos portugueses e de parte significativa da comunidade estrangeira.
"A maior parte dos imigrantes brasileiros concentra-se em setores de serviços, construção civil e comércio, com salários próximos ao mínimo ou medianos, o que contrasta com aluguéis que, em Lisboa e Porto, podem consumir de 40% a 60% da renda familiar", diz o professor.
"Assim, ainda que a permanência legal esteja assegurada, a permanência material e social torna-se inviável para parte relevante dessa comunidade", complementa.
O geógrafo Luís Filipe Gonçalves Mendes, professor da Universidade de Lisboa, avalia que Lisboa passou por um processo acelerado de gentrificação e turistificação em comparação a outras capitais europeias.
Enquanto cidades como Barcelona, Paris e Amsterdã enfrentam esse fenômeno há décadas, em Lisboa a transformação ocorreu em pouco mais de dez anos.
"A combinação de turismo de massa, plataformas digitais e investimento internacional tem desencadeado processos semelhantes em muitas capitais e cidades médias europeias. A diferença aqui reside na intensidade local e nas respostas políticas", afirma.
Entre os fatores apontados por Mendes estão a expansão do alojamento local, que reduz a oferta de arrendamento de longa duração, o aumento da procura por parte de estrangeiros com maior poder de compra, e a entrada de fundos imobiliários que tratam a habitação como ativo financeiro.
Ele acrescenta que políticas públicas insuficientes de regulação e habitação social também contribuíram para a escalada dos preços.
Além disso, a estagnação dos salários em Portugal agrava a situação; o salário mínimo no país é de 870 euros (cerca de R$ 5,4 mil). Segundo Mendes, a produtividade econômica do país não foi acompanhada por uma redistribuição proporcional da riqueza, tornando as famílias mais vulneráveis ao aumento dos aluguéis.
Espanha e Bélgica como alternativas
O bibliotecário Lucas Carrera, 37, deixou Lisboa depois de sete anos e escolheu a cidade de Barcelona, na Espanha.
Arquivo pessoal via BBC
O bibliotecário Lucas Carrera, 37, deixou Lisboa depois de sete anos e escolheu a cidade de Barcelona, na Espanha, para se estabelecer em setembro deste ano. Embora o valor do aluguel onde ele morava não tenha aumentado muito — em 2018, pagava 250 euros e, em 2025, saiu pagando 280 euros — o lazer, segundo ele, encareceu consideravelmente.
"Sair e tomar uma cerveja, ir ao cinema toda semana eram coisas que não podia mais. Nesse sentido, já estava diminuindo o poder de compra. Começou a ficar mais apertado", diz.
Os gastos fixos também pesaram no orçamento. "Quando cheguei, fazia compras com 20 euros por semana. E já nos últimos meses, gastava 50 euros por semana. A conta de luz aumentou bastante também. Cheguei a pagar 15 euros, como também 75 nos últimos anos. No geral, o salário não acompanhou o custo de vida lá", destaca.
Ganhando uma média de 1000 euros brutos todos os meses, ele afirma que vivia em Portugal praticamente no limite e com possibilidades pequenas de crescimento pessoal e profissional. Foi então que decidiu pela cidade catalã, buscando aumentar o salário e ter mais poder de compra.
Vivendo há poucos dias em Barcelona, ele já conseguiu alugar um apartamento no centro da cidade para morar sozinho e, atualmente, trabalha como recepcionista de hotel, ganhando o dobro do que ganhava em Portugal.
"Tirando o aluguel, que realmente de fato é diferente, o resto de comida, lazer, você consegue até mais barato. Os transportes são mais baratos e todo o resto", reforça. Lucas paga em um estúdio 630 euros o que, segundo ele, seria impossível em Lisboa.
Embora não tenha sido o principal motivo para deixar o país, ele afirma que a onda anti-imigração aumentou em Portugal, piorando sua experiência de vida ali.
Em junho, o governo português anunciou que 33.983 estrangeiros deverão deixar o país, entre eles 5.386 brasileiros. Mesmo tendo passaporte europeu, ele acredita que a xenofobia piorou por lá. "São discursos que estavam ganhando força e que não eram compatíveis com a minha ideologia", reforça.
Questionado se pretende voltar para o Brasil, ele reforça que não e que se acostumou com a vida que leva na Europa. "Não passa pela minha cabeça voltar agora, talvez algum dia."
Assim como Lucas, o brasileiro Glauco Brandão, 42, também passou parte da vida em Portugal antes de se mudar para outro país europeu. Ele chegou a Lisboa em 2019, pouco antes da pandemia, e trabalhou como moderador de conteúdo para uma empresa terceirizada de redes sociais, recebendo cerca de 900 euros por mês.
O marido ganhava um valor semelhante, mas os dois precisavam economizar em diversas despesas. O aluguel de 700 euros consumia quase metade da renda conjunta e, segundo ele, ao fim do mês, muitas vezes era preciso recorrer à ajuda da família no Brasil.
Com salários médios de 1.600 euros para o casal, os gastos fixos com moradia, contas e alimentação pesavam no orçamento. Glauco conta que o aumento dos preços, principalmente dos aluguéis, foi o que mais comprometeu a permanência em Lisboa.
"Sempre faltava no final do mês, e isso incomodava demais, porque não foi esse o intuito de ter saído do Brasil", afirma. A situação levou à decisão de deixar Portugal em 2024, após cinco anos no país.
Hoje, vivendo em Ghent, no norte da Bélgica, ele afirma que está confortável financeiramente. O marido recebeu uma oferta de emprego para a mesma função, mas com salário três vezes maior, e Glauco encontrou trabalho em uma empresa de limpeza, recebendo mais do que o dobro do que ganhava em Lisboa.
Na avaliação dele, o custo de vida é parecido com o português, mas os aluguéis são mais baixos e a estrutura dos imóveis é melhor. Se locomover pela cidade também foi outro ponto positivo, destaca o brasileiro.
"O transporte público funciona perfeitamente, você não passa nervoso nenhum. Tudo que eu passava nervoso em Portugal, aqui não passo. O transporte lá era muito ruim", compara.
Embora não tenha sido o principal motivo para sair de Portugal, Glauco também reconhece que os discursos anti-imigração ganharam força no país, afetando a vivência de estrangeiros. Ele mesmo chegou a sofrer episódios de xenofobia, mas considera que a questão financeira pesou mais.
Um ano e meio após a mudança, diz estar estabilizado e não pensa em retornar ao Brasil, exceto para visitar a família.
Gentrificação acelerada
O ódio online contra brasileiros em Portugal
O processo de gentrificação tem se intensificado em Lisboa e Porto nos últimos anos, provocando aumento dos aluguéis, transformação do comércio local e substituição de moradores antigos por turistas e estrangeiros de maior poder aquisitivo.
Para Mendes, trata-se de um fenômeno de "turbo-gentrificação", em que os preços da habitação chegaram a subir até 300% nos últimos 15 anos, ao mesmo tempo em que cerca de 20% da população dos centros históricos deixou a região entre 2011 e 2021.
Segundo Mendes, a presença de compradores estrangeiros também pressiona os valores de venda e reforça a valorização dos imóveis. Ele aponta que há correlação direta entre o aumento de unidades em plataformas como o Airbnb e a elevação dos preços de habitação em bairros de Lisboa e Porto.
Para enfrentar o problema, o professor da Universidade de Lisboa defende uma combinação de medidas, como expansão da habitação pública, regulação mais rígida do alojamento local, taxação sobre segundas residências compradas por não residentes e políticas anti-despejo.
Experiências em outros países, diz o geógrafo, mostram que a junção entre regulação e investimento público pode reduzir a pressão sobre os aluguéis.
O arquiteto e urbanista Valter Caldana, professor da FAU-Mackenzie, considera que Lisboa e Porto seguem uma tendência observada em várias cidades europeias desde a década de 1970, mas em ritmo acelerado.
Ele lembra que intervenções urbanas históricas, como no bairro do Marais, em Paris, já provocaram processos semelhantes. A diferença, segundo ele, é que nas últimas duas décadas a mercantilização da terra urbana fez a gentrificação ganhar velocidade inédita, com impacto direto da chegada de estrangeiros de maior poder aquisitivo em cidades como Lisboa.
Caldana também ressalta que o processo está ligado a um conjunto de fatores, e não apenas à ação de um grupo específico. Para ele, políticas públicas devem ser elaboradas a partir do interesse público e coletivo para resolver o problema.
O professor alerta que esse processo aumenta o deslocamento de famílias para áreas periféricas, gerando desorganização na vida cotidiana, comprometendo o acesso a serviços e exigindo a reconstrução de laços sociais.
"Esse impacto habitacional é considerado um dos aspectos mais críticos da gentrificação. Na medida em que compromete a proximidade do emprego, escolas para jovens e crianças, atividades culturais e, acima de tudo, as atividades gregárias, ou seja, as relações interpessoais", destaca.
Políticas de imigração x permanência
Em 2023, a comunidade brasileira que reside legalmente em Portugal contava com 513 mil pessoas, segundo os últimos dados do Itamaraty. A reportagem buscou números atualizados de quantos brasileiros deixaram Portugal no último ano, mas não obteve retorno das autoridades portuguesas até o fechamento da reportagem.
Entretanto, o último relatório da Aima (Agência para a Integração, Migrações e Asilo), divulgado em 2023, indica que mais da metade (52,4%) das Notificações de Abandono Voluntário emitidas em Portugal são destinadas a brasileiros.
Esse registro formal permite que o estrangeiro deixe o país por conta própria sem sofrer restrições futuras de entrada no Espaço Schengen, diferentemente de uma deportação administrativa.
Além disso, o programa de Retorno Voluntário, cofinanciado pelo Fundo para o Asilo, Migração e Integração, oferece apoio logístico e financeiro para facilitar a saída e reintegração no país de origem, e 81,2% de seus beneficiários são brasileiros.
Para o professor Nyegray, as políticas migratórias portuguesas desempenham papel fundamental na avaliação dos brasileiros sobre permanecer ou deixar o país diante do aumento do custo de vida.
"Portugal adota historicamente uma postura relativamente aberta em relação aos cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), incluindo brasileiros, com acesso facilitado à residência legal, ao mercado de trabalho e a direitos políticos", diz.
Recentemente, o regime de residência automática para cidadãos da CPLP acelerou processos de regularização e reduziu barreiras burocráticas.
Na prática, segundo Nyegray, a facilidade de entrada não garante condições de permanência sustentável. O professor destaca o descompasso entre políticas migratórias e habitacionais.
Enquanto os brasileiros conseguem residência legal, os preços da habitação, especialmente em Lisboa e Porto, tornam-se incompatíveis com a renda média.
"A criação do visto D8 para nômades digitais, por exemplo, atrai trabalhadores remotos de alta renda que competem no mesmo mercado de arrendamento de médio prazo em que muitos estudantes e recém-chegados brasileiros procuram moradia", diz.
O resultado, avalia Nyegray, é uma ambiguidade: Portugal oferece segurança jurídica, mas o custo de vida dificulta transformar a residência legal em um projeto de longo prazo. Muitos optam pelo retorno ao Brasil ou buscam alternativas para morar em cidades médias como Braga, Aveiro, Setúbal, dividir habitação ou investir em carreiras mais remuneradas, utilizando a regularidade documental como vantagem.
Mendes acrescenta que a saída da população imigrante empobrece cultural e economicamente as cidades.
A redução da diversidade fragiliza mercados locais, enfraquece a mão de obra para serviços essenciais e transforma áreas históricas em cenários voltados exclusivamente ao turismo, comprometendo a sustentabilidade urbana a médio e longo prazo.
"Uma cidade sem imigrantes não é mais uma cidade. Fica higienizada, etnicamente limpa, com ausência total de cosmopolitismo. Torna-se tão educadora quanto um balneário."